Por Antonio Martins em “Outras Palavras”, 22/01/2020 às 19:30 – Atualizado 22/01/2020 às 19:55
“Se vocês calarem, até as pedras falarão”, teria dito o Cristo, exasperado com a apatia dos apóstolos. Na Itália, as palavras parecem fazer-se realidade. Diante de uma eleição decisiva e da prostração da esquerda institucional, a luta para frear o avanço da ultradireita está sendo assumida pelas… sardinhas. Desde novembro, as praças da Emília Romana, um tradicional reduto do Partido Comunista (e, em tempos mais recentes, do Partido Democrático-PD) encheram-se de jovens, de imigrantes e de ativistas desgarrados. Não são partidários, e se autoconvocaram. Porém, ao menos até o momento, não fazem reivindicações ousadas, nem rechaçam a velha política. Querem apenas evitar que o ascenso da Liga, o partido dirigido por Matteo Salvini e assessorado por Steve Bannon, conquiste o poder em sua região. Sabem que, para isso, precisam manter, no governo regional, o presidente Stefano Bonaccini, do PD.
As eleições ocorrerão neste domingo (26/1). Com popularidade crescente há dois anos, Salvini anunciou, desde novembro, que “conquistar” a Emília Romana era seu objetivo imediato principal; e que usaria o triunfo para desestabilizar o governo central italiano, formado por uma coalizão entre o PD e o Movimento Cinco Estrelas (MVS). A arrancada começaria em 12/11, com um comício-desafio em Bolonha – identificada com a esquerda desde que se tornou, em meio à II Guerra, centro da resistência antifascista no centro e norte da Itália. Salvini prometia lotar um ginásio onde cabem 5,7 mil pessoas.
Veio, então, o inesperado. Mattia Santoni, um bolonhês de 32 anos, expressou em rede social sua angústia. Reuniu alguns amigos e lançou um chamado. A resposta ofuscou a insolência de Salvini: 15 mil pessoas encontraram-se em praça pública contra seus planos, no dia em que ele pretendia iniciar sua marcha gloriosa. O exemplo prosperou. Nas semanas seguintes, o apelo contra a ultradireita contagiou outras cidades da Emília. Em seguida, transbordou as fronteiras da região, chegando a Florença, Turim, Nápoles, Palermo, Milão. Nelas, reuniram-se sempre dezenas de milhares de pessoas. Daí, do fato de as multidões se comprimirem, em praças que se tornavam pequenas para uma presença surpreendente, surgiu o nome de sardinhas.
Em 14 de dezembro, chegaram a Roma e eram 100 mil, ao som de Bella Ciao. O ato foi organizado por Stephen Ogongo, jornalista negro de 45 anos e origem queniana. Nos cartazes, lia-se: “Humanidade e Respeito”, “Indiferença, o lado obscuro da Humanidade”, “Fascista bom é fascista frito”. Ao se dirigir aos participantes, Mattia Santoni, que tem atuado com um porta-voz informal dos movimentos, frisou: “Somos os antifascistas, os pró-igualdade, contra a intolerância e a homofobia”.
Esta plataforma, sucinta porém robusta, e sua forte capacidade de mobilização poderão gerar alguma novidade política mais duradoura? Entrevistado pelo Guardian, Santoni parece incerto. Ele lembra que, na Emília Romana, Bonaccini, o candidato da esquerda institucional, só se animou a ir às ruas e lutar pela própria reeleição depois que as sardinhas o tiraram da letargia. Pesquisas de opinião recentes, em toda a Itália, sustentam que 17% dos eleitores votariam no grupo, recém-surgido, se ele disputasse alguma vez as eleições; e que, para 40%, ele é a maior ameaça ao ascenso de Matteo Salvini.
A urnas da Emília Romana podem ser um divisor de águas. Divulgadas em 11/1, as últimas sondagens preveem uma disputa acirrada entre Bonaccini e Lucia Borgonzoni, da Liga. Entrevista colhidas pelo Guardian sugerem um enorme cansaço, por parte dos eleitores do PD, com o partido. “O que a esquerda fez nas décadas após a guerra foi maravilhoso. Escolas para todos, saúde para todos, emprego para todos. Mas esta é a esquerda histórica. Depois, eles esqueceram a classe trabalhadora e começaram a servir os bancos e Bruxelas [sede da União Europeia]”, disse um deles.
Se Bonaccini vencer, isso poderá servir de estímulo a uma renovação do PD? Se ele perder, e Matteo Salvini for capaz de abalar o governo italiano, surgirá uma alternativa, alimentada pelas praças que não parecem dispostas a se render? É cedo para resposta. Mas o caso italiano parece dizer algo ao Brasil: quando a esquerda institucional tomba em desalento, é preciso assumir o seu lugar.