Fernando R. Mieli

Eles vieram felizes, como para grandes jogos atléticos: com um largo sorriso no rosto, com forte esperança no peito – porque eram jovens e eram belos.
Marte, porém, soprava fogo por estes campos e estes ares. E agora estão na calma terra, sob estas cruzes e estas flores, cercados por montanhas suaves.
São como um grupo de meninos num dormitórios sossegado, com lençóis de nuvens imensas, e um longo sono sem suspiros, de profundíssimo cansaço.
Suas armas foram partidas ao mesmo tempo que seu corpo, e, se acaso sua alma existe, com melancolia recorda o entusiasmo de cada morto.
Este cemitério tão puro é um dormitório de meninos: e as mães de muito longe chamam, entre as mil cortinas do tempo, cheias de lágrimas, seus filhos.
Chamam por seus nomes, escritos nas placas destas cruzes brancas. Mas com seus ouvidos quebrados, com seus lábios gasto de morte, que hão de responder estas crianças?
E as mães esperam que ainda acordem, como foram fortes e belos, depois deste rude exercício, desta metralha e deste sangue, destes falsos jogos atléticos.
Entretanto, céu, terra, flores, é tudo horizontal silêncio. O que foi chaga, é seiva e aroma – do que foi sonho, não se sabe – e a dor anda longe, no vento…

                                     PISTÓIA, CEMITÉRIO MILITAR BRASILEIRO (1955) – Cecilia Meireles

 

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É incrível como a poetisa brasileira Cecilia Meireles (nasceu no Rio de Janeiro em 7/11/1901 e faleceu em 9/11/1964) do século passado exprima com tal sentimento e clareza a atmosfera do Cemitério de Pistóia, localizado na região da Toscana, na cidade de mesmo nome, na Itália.

O Cemitério Militar Brasileiro foi instalado em solo italiano em dezembro de 1944, após os meses iniciais do emprego operativo da FEB contra o jugo nazifascista em solo italiano, e abrigou os corpos dos membros do Exercito Brasileiro e da Força Expedicionária Brasileira, mortos em ação durante a Segunda Guerra Mundial.

Até 20 de junho de 1962, ali repousaram os restos de 462 soldados, transferidos depois para o Brasil. Em 1967, no lugar do cemitério, foi erguido um monumento votivo projetado por Olavo Redig de Campos, discípulo de Oscar Niemeyer. Hoje apenas abriga o túmulo do soldado desconhecido.

Não tão poética, porém ainda mais impressionante e dolorosamente real, é a semelhança desse cenário com que nós brasileiros passamos hoje: o que sentimos, vivemos, padecemos no Brasil, atual Cemitério de Pistóia.

Adiantaria para nos consolar (não para nos confortar), reviver o significado do Neo-realismo  italiano – movimento cultural surgido na Itália ao final da segunda guerra mundial e contemporâneo do Cemitério de Pistóia.  Um de seus maiores representantes foi o cineasta  Pier Paolo Pasolini  que  buscava representar a realidade social e econômica dessa época. Para ele, “o neo-realismo representou o primeiro ato de consciência crítica do ponto de vista político e ideológico que a Itália teve de si mesma. Até o neo-realismo, a Itália não tinha  uma história unitária, não era uma história de uma nação, mas a história de um conjunto de pequenas nações, de pequenos povos, além da grande divisão entre o norte e o sul do país. Nos vinte anos que antecederam o neo-realismo, a Itália viveu a história do fascismo, ou seja, a história de uma aberração unitária. Somente através da resistência a história italiana  começou realmente, podendo ser comparada à história de países como a Inglaterra, a França ou a Espanha. Antes de mais nada a resistência significou  o redescobrimento da Itália, o primeiro olhar sem o uso do véu da retórica, sem falsidade, com o prazer de descobrir a si mesma, de denunciar seus próprios defeitos. Este foi um denominador comum a todos. Outro caráter comum a todos foi o ponto de vista marxista, onde todas as obras neo-realistas se baseiam na idéia de que o futuro será melhor enquanto ocorrerá uma evolução que não se sabe qual seja…”

Ora, assim como os culpados das mortes dos brasileiros em Pistóia foram a guerra, o ódio, a intolerância, a ignorância, o fanatismo, a lavagem cerebral, qualidades inerentes à politica dos nossos governantes. Enrico Berlinguer (político italiano e secretário-geral do Partido Comunista Italiano de 1972 até sua morte em 1984 ), afirmou categoricamente que foram os dirigentes do Movimento Social, partido da direita italiana fascista, os responsáveis pelos delitos do fascismo: corajosos somente quando tinham a proteção da SS, além do massacre dos jovens e partigiani italiani (a resistência italiana foi um movimento armado de oposição ao fascismo e à ocupação da Italia pela Alemanha nazista, bem como à República Social Italiana – fundada por Benito Mussolini, em território controlado pelas tropas alemãs –durante a Segunda Guerra Mundial).

Se os jovens de hoje acabarão como os nossos mortos enterrados em Pistóia ainda não sabemos.  Mas é evidente que“qualquer semelhança com os dia de hoje é mera coincidência”

A partir de agora, necessitamos, com urgência, de um novo neo-realismo e de uma firme e profunda resistência para escrever a história do Brasil – como uma nação que se empenha a fazer algo no espectro dos direitos humanos!

E como diria Cecilia Meireles : “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. – Não sou alegre nem sou triste: sou poeta.”