Fellini e eu

companheiro da noite de insônia ou da vida inteira

“E’ una festa la vita
Viviamola insieme” – “A vida é uma festa vamos vivê-la juntos”

Não consigo dormir…
Também pudera
Somos a chacota do mundo
Somos o fundo do poço sem lua
Somos a antítese do humano
Vivemos em continua essência
Do não acreditar em nada
Em ninguém
Um filme inacabado em cartaz na minha mente:
8 ½, Um número perfeito.

Estou de pé
Acordado produzindo imagens
De desertos infindáveis
De tendas desenhadas
De palhaçadas incríveis
De risadas histéricas
Da fome, do esquecimento
Da brutalidade da inconsequência.
Não consigo pegar no sono!
Fellini que filme faria
No ritmo da pandemia?

Como me dá prazer ouvir o seu nome!
Lembrá-lonem que seja aqui no quase sono ou
Aonde quer que eu vá.
Tenho que esperar seu novo filme!?
Senhoras e Senhores
Gostaria de me desculpar: sabemos tão pouco de tudo…
Sinto muito pelo incômodo, mas
“Un Grande Buggiardo” não teria nada para dizer.
Vamos então engolir sua diversão já assistida
Seu bando
Seu palavreado

Eu passaria o resto da noite vendo, ouvindo, degustando todas as fugas da alma, os sentimentos que não mudaram e que parecem tão difíceis de serem compreendidos. Federico já nos proporcionou todos eles.

Espero que algo tome corpo, que se plasme; somos filhos do destino, e aproveito do fato de ainda estar vivo para contar esta história: uma bela dedicatória de amor construiu minha ligação com o todo, com a solidariedade, como um circo louco de fabricantes de universos!

Um grito de prazer,
De medo e coragem.

Distraído pela ideia da morte, da doença, da possibilidade de desaparecer, de não estar mais com os amigos, parentes, entes queridos pensei que seria o assunto, com muita desfaçatez, que se transformaria em material para um novo filme: explosões de criatividade e de cultura, de palavras de esperança nas mãos de Fellini!

Desculpem a impertinência, mas ao ligarem os projetores – e este é um tempo de desafios – quando os cinemas voltarem a abrir, nós espectadores particularmente unidos, teremos a mesma sensação terapêutica, o mesmo estado de espírito de Fellini ao entrar em cena, ao mergulhar na atmosfera do teatro, da cenografia, dos atores, da maquiagem, dos costumes, da troupe, das luzes tão indispensáveis: “Tudo é tão familiar, parece que entro na minha casa, a casa de sempre, minha verdadeira casa”.

Comecei a meditar… Logo vaguei pelas “Noites de Cabiria” tentando me deitar, não contei as rachaduras da parede nem as folhas do papel de parede colado no muro, e extraí observações que tinha lido de um colóquio sobre 81/2 cujos apontamentos apareceram em Bianco e Nero em abril de 1963:

Ao final de 81/2, Marcello sorri da mesma forma que Cabiria: na verdade, eles passaram por um processo heterogêneo, um desenvolvimento heterogêneo até chegarem a este resultado. O otimismo de Cabiria era de tipo psicológico: próprio de um animalzinho confiante como uma criança. Embora expressa como pressentimento, a libertação interna de Marcello tem êxito apenas depois de um exame pormenorizado das coisas. Cabiria não entende nada do que lhe sucede; Marcello em contrapartida, procede a uma autópsia solitária de si mesmo. Esse final significa para Marcello a aceitação inteligente, exata e consciente de si mesmo e da realidade libertada do presente catastrófico de ideais inalcançáveis. Trata-se de uma aceitação ativa, com um sentido de responsabilidade exatamente definido, e não de uma resignação passiva. Censuraram-me por não ter terminado o filme no ponto em que Guido desiste de fazer seu filme. Na verdade, porém, meu interesse em descrever o caos estava em poder encontrar uma saída para ele; de outro modo, teria a sensação de ter procedido de maneira não muito sincera. Talvez estes sejam meus limites; de qualquer forma, porém, acho que são também uma prova de vitalidade. Este desfecho é a prova cabal de que ainda subsiste em nós a possibilidade de uma revolução repentina.

É isso aí! Mesmo sabendo que Fellini nos ensinou que as coisas têm valor no momento em que são percebidas e vividas, isto é, no momento em que as inventamos, mesmo se já tiverem milhares de anos; este momento insano e autêntico, irremediavelmente irracional que vivemos é uma história em quadrinhos sem heróis, só vilões. Sem tipos e sem roteiro literário. Quantas alterações ainda ocorrerão para termos um roteiro definitivo?

Começo a me acalmar: o mal estar foi passando enquanto os episódios de Federico ajudavam a criar na minha mente uma forma mística de realidade, de magia, de libertação deste estado de conflitos, medos e injustiças que estamos vivendo.

Fecho os olhos e, como se ele me desejasse bons sonhos, ouvi suas palavras acompanhadas de uma trilha sonora de Nino Rota: “O amor que nos integra, que nos conduz a uma dimensão vital mais atraente, é o topo mais alto e mais inalcançável”.

 

Boa noite.